“To generalize means to think.” - GWF Hegel, Elements of the Philosophy of Right (1820)
007 é o agente ficcionado de sua Majestade britânica com ordem para matar. O nosso 007 é um agente oficial do estado português com ordem para generalizar. Generalizar que os habitantes dos bairros degradados são bandidos, num paralelo inquietante com as fronteiras da xenofobia.
O bairro da Jamaica, Seixal, tornou-se nos últimos dias palco de uma cena de violência policial filmada e divulgada pelas redes sociais. O evidente descontrolo emocional com que os policias actuaram perante população indefesa não foi condenado nem pelo chefe de polícia, nem pelo governo, nem pelo presidente da república. No dia seguinte, a manifestação de desgravo contra a violência policial, no centro da cidade, foi dispersa a bala de borracha, numa atitude inusitada em Lisboa. Nos dias seguintes, as noites foram marcadas por raids de vandalismo contra automóveis avulso, à semelhança do que se conhece há muitos anos noutras metrópoles europeias.
Será o início da modernização do comportamento dos jovens dos arrabaldes da cidade perante uma polícia, igualmente modernizada, incompetente para manter a ordem?
Nem todos os polícias são os polícias que brutalizam as pessoas. Felizmente a maioria dos polícias não aceita entrar pelos terrenos escorregadios de fazer o trabalho sujo que nunca pode ser expressamente ordenado, mas que é feito, ainda assim. Mas há quem seja promovido por o fazer, quiçá por ter a desenvoltura para se arriscar a ser apanhado em falso.
Se as coisas não funcionam assim, os profissionais da segurança estão convencidos que assim é. O espírito de corpo típico das corporações militares, para-militares e policiais, em todo o mundo, é disso que é feito. É isso que se ensina em toda a recruta: fidelidade e disciplina. A acção disciplinar nas forças de segurança é conhecida por ser ora protectora dos seus homens e mulheres mais violentos, ora exemplar, num caso ou noutro em que esse sacrifício pode ser útil ou se torna indispensável para limpar a imagem pública da instituição em causa.
No caso do bairro da Jamaica, não tendo havido uma condenação da acção policial, tudo aponta para que a estratégia usada e apoiada ao mais alto nível do estado seja a mais vulgar, a primeira. As autoridades estão a contar com a boa-vontade do público, numa época em que o racismo parece ser um risco para a boa ordem da civilização. Elipticamente chamado populismo, para se confundir com radicalização política, o racismo é, em Portugal, a principal ameaça identificada pelos serviços de segurança. Mas, ao mesmo tempo, neste caso, as autoridades contam com a cumplicidade de entendimento racista sobre a vida social para desculpar o comportamento aparentemente injustificável dos policias, no bairro e no centro de Lisboa.
Escrevo aparentemente injustificável porque a resposta oficial à divulgação das imagens do incidente não foi dizer que estas deveriam ser interpretadas de um modo qualquer, não evidente, que pudesse explicar a razoabilidade do comportamento policial. A resposta oficial foi um apelo a quem viu as imagens para não generalizar. Isto é: as autoridades recusaram-se a condenar a violência inusitada, admitiram não haver justificação conhecida para tais actos e pediram para o público se desinteressar do assunto, como se a violência policial racista não estivesse já previamente identificada como um problema sério em Portugal.
Para as forças de segurança, trata-se de definir o inimigo e torná-lo um alvo, incluindo os danos colaterais, como sempre acontece. Qualquer estratégia de segurança decorre de uma qualquer generalização sobre quem seja o inimigo. O que está escrito é que o inimigo é o uso social e político da xenofobia. O que se assiste na prática é a desvalorização de um caso publicamente visionado e divulgado de uma acção policial injustificável, eventualmente de fundo racista. Por isso, pela reacção oficial, ficamos a saber duas coisas: que o inimigo são os habitantes de bairros degradados cujo direito à habitação tem vindo a ser violado há anos, habitantes de origem africana, alvos privilegiados da xenofobia que é o sustento do maior risco de segurança identificado no país. Ficamos também a saber haver um profunda confusão, desde o polícia de giro até ao presidente da república, sobre quem é de facto o inimigo.
27/01/2019 António Dores
https://sociologia.hypotheses.org/1345