Existe um Livro tão inacabado e inédito do Ian Fleming que só eu o li. A acção decorre nos anos 70. M. manda chamar James Bond, o indispensável agente de Sua Majestade, que partilha só com os magarefes o alvará para eliminar quem quer que seja sem ter de prestar contas por isso. Goza do privilégio a que tão prosaicamente chamam «licença para matar».
A fiel e paciente secretária põe-se em campo para o descobrir. Ela sabe que ele estará algures num clima tropical, ou todo nu, ou de «smoking». Ou na cama, a conviver e a transpirar, ou junto a uma mesa de roleta, com um «dry martini na mão.
Ao cabo de algum tempo, localiza-o e transmite-lhe a convocação de M. Ele, que está nas Caraíbas, promete que dentro de uma hora se apresenta no quartel-general. Ninguém sabe como James Bond consegue isto, mas o facto é que cumpriu: uma hora depois estava a entrar, a dirigir um dos habituais piropos sem esperança a Miss Monneypenny e a entrar no gabinete de M. Este olhou-o com austeridade e disse-lhe: «Sente-se, James. Olhe aqui para o mapa. Isto é a Madeira, um pequeno arquipélago português, onde muitos britânicos passam férias e do qual não vem mal nenhum ao mundo. Aqui é Portugal, onde ocorreu uma revolução democrática e que, estando lentamente em vias de normalização, atravessa agora uma fase confusa e reversível quanto à sua evolução. Os americanos preparam-se para tomar medidas drásticas já. Quanto a nós, é prematuro. A Revolução dos Cravos deu-lhes prestígio e atenção e há na opinião pública ainda uma certa nostalgia romântica em torno do caso português. Temos de nos antecipar e a sua missão, James, é levar o caos ao rubro, mudando assim a forma como o mundo os olha e fornecendo-nos uma justificação forte e plausível para liderarmos um projecto de intervenção. Terá de avistar-se com Q., que, além dos adereços do costume, tem mais para lhe dar e explicar. Ele está à sua espera. Boa sorte, James.»
Bond cumprimentou, saiu e dirigiu-se ao bazar-laboratório de Q. Recebido com o abraço do costume, Q., de bata branca imaculada, começou por lhe entregar alguns imaginativos e preciosos «gadgets». Além do Aston Martin Volante, ao qual acrescentara dois mísseis anti-aéreos, o bólide vinha agora também equipado com um pequeno compartimento para bombons Ferrero Rocher. Entregou-lhe depois duas «Berettas» aparentemente iguais e recomendou: «Cuidado com isto, James. Elas parecem iguais, mas não são. Esta é a sua para uso normal. Dispara pela frente. Aquela dispara pela culatra. É muito útil em situações em que tu adivinhas que vais ter de entregar a arma. Entregas esta e já sabes que quem disparar contra ti queima os seus próprios miolos.» Fez uma pausa e disse: «Agora - e antes de te mostrar a mais letal das minhas armas - vamos ao fundo da questão. M. ter-te-á dito o essencial. Mas nada te explicou sobre a alusão à Madeira. Ora, ela desempenha aqui um papel essencial. Está fora do continente, tem uma população langorosa e paciente e reúne todas as condições para servir de quartel-general para a tua missão de tornar o país patentemente inviável. A questão é a de infiltrar num dos partidos com hipóteses de ganhar as eleições no arquipélago um caudilho de raciocínio muito atípico, um demiurgo de ambições equivocadas, um Calígula imprevisível que passe a vida a chatear o seu partido e Portugal em geral. Sem partidos normalizados - ou sem um, desde que seja suficientemente influente - a confusão agudiza-se e, antes de Angola ser designada pelas Nações Unidas para pôr termo ao pandemónio, teremos nós a nossa oportunidade. Para isso concebi um 'robô' perfeito, que te vou apresentar. Vem ao meu escritório.»
Bond deu de caras, por entre nuvens de fumo de charuto, com duas solas de sapato cruzadas sobre a secretária. Só as mãos se lhe viam, brandindo, uma, o Tio Patinhas, e a outra uma biografia de César. A pedido de Q., civilizou a posição e mirou 007 dos pés à cabeça. «Então este é que é o arteista que me vai pôr na chefeia da Madeira?», perguntou. «É o nosso melhor homem,» rematou Q. «Olhe que eu já escolhei o parteido. É o PPD. Esteive vendo as provas de entrada no PS e acho que chumbava logo na escreita.» «O PPD serve. James, deixo-te com ele. É bom que falem e se conheçam melhor.» «Ao serviço de Sua Majestade,» respondeu James Bond, resignado.
«Bom, já que vamos trabalhar uns anos juntos, o meu nome é Bond, James Bond». «Eu ainda não cheguei a essa parte do livro de instruções, mas acho que o meu é Jardeim, Alberto João Jardeim.»
Nuno Brederode dos Santos, Expresso, 11/12/1999
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