domingo, 20 de maio de 2012

James Bondsky

Das muitas vezes que estive em Londres, a maior parte foi em passeio, algumas de passagem para outros destinos e umas 10 ao serviço da Ciesa-NCK para o nosso cliente ICI. A sede ficava em Londres, mas o departamento das fibras, mais concretamente do Terylene, era em Harrogate, uma pequena cidade balnear no nordeste da Inglaterra. As minhas reuniões com a ICI – nossas quando o Artur Portela Filho começou também a acompanhar-me – faziam-se quase sempre em Londres, mas houve duas ou três que foram em Harrogate, para onde íamos e regressávamos de avião, desde o aeroporto de Heathrow até ao de Bradford-Leeds, a pouco mais de 20 quilómetros dos escritórios da ICI, que mandava um carro buscar-nos.

De uma das vezes em que fui – ao tempo, o Artur Portela Filho ainda ficava em Lisboa – o regresso a Londres fez-se de comboio porque o mau tempo desaconselhava que viéssemos de avião. Comigo vinha o Ronald Moore, o nosso contacto na ICI, e um outro alto funcionário da empresa, rapaz ainda novo, muito simpático e de longe mais conversador do que o seu colega. Chamava-se também Moore (Peter), e ouvi dele esta história, que considero engraçadíssima e que passo a contar.

Foi no tempo em que começaram a aparecer as aventuras do James Bond que o Ian Fleming escrevia à média de duas por ano. Recordo-me de ter comprado o primeiro livro, talvez o “Dr. No”, em pocket book e, a partir daí, nunca voltava de Londres sem trazer os James Bond que, entretanto, tivessem sido publicados. Em jeito de parêntese, direi que cada um me custava, em dinheiro português da época, 10 escudos e, hoje, essas edições são consideradas de coleccionador e valem 50 contos cada uma. E fecha o parêntese para entrar a tal história que o meu parceiro de viagem contou, enquanto saboreávamos, no restaurante do comboio, uma excelente sole de Dover, com as clássicas Brussel sprouts e as insípidas batatas cozidas que os Ingleses nunca dispensam.

A certa altura do jantar, veio à baila o James Bond e o Peter começou-se a rir e disse para o Ronald Moore que espetava cuidadosamente uma couve-de-bruxelas:

- Ronald, você lembra-se do Mark? - Depois, desta vez para mim – É um colega nosso que trabalha no marketing, em Londres…

Sentei-me melhor na cadeira do restaurante e preparei-me para o ouvir. E ele, dando um gole no Leroy Bourgogne Blanc:

- Um dia, o Mark foi mandado a Moscovo para estudar as possibilidades de, com o Governo soviético, ou sem qualquer parceria, o Terylene se implantar na União Soviética e, a partir daí, nos países da Cortina de Ferro.

Fez uma pausa, acendeu um Dunhill e continuou:

- Ao aterrar no aeroporto de Sheremetyevo, em Moscovo, passou a alfândega e o controlo de passaportes e, já na rua, meteu-se num táxi e, ao motorista, mostrou um cartão, em que, em caracteres cirílicos, estava escrito o nome do hotel onde a companhia lhe reservara quarto. O outro acenou com a cabeça, disse da, da e arrancou. Vinte minutos mais tarde, estava a deixá-lo em frente ao Batschug Kempinsky, um imponente edifício de muitos andares e que ocupava todo um quarteirão, em frente ao Kremlin. Pagou o que o condutor lhe apontava no taxímetro, esperou que lhe fosse entregue a mala e entrou na Recepção, ainda mais magnificente do que a fachada do hotel.

O meu companheiro de viagem interrompeu o que estava a dizer e olhou-me:

- Espero não estar a maçá-lo com a história do Mark…

- De maneira nenhuma!... – atalhei, realmente interessado e sem qualquer lisonja – Estou a ouvi-lo com a maior atenção e muito gosto…

Agradeceu e prosseguiu:

- O empregado do balcão entregou-lhe a chave do quarto 503 e, carregando ele próprio a mala, entrou num dos vários elevadores do rés-do-chão e subiu ao 5º andar. O quarto era logo um dos primeiros à sua esquerda e, quando abriu a porta, viu-se num grande salão cheio de espelhos com molduras douradas, no centro do qual havia uma cama de dossel, com largura suficiente para quatro pessoas. Do tecto, pendia um candelabro de muitas lâmpadas e vidrilhos e, nas paredes, abriam-se guarda-roupas que iam do chão até ao tecto, cada um deles ladeando cómodas pesadas e antigas que deviam estar ali desde o tempo dos czares. À esquerda da espaçosa cama havia uma porta que abriu. Dava para um quarto de banho, todo em mármore e cristal, com uma banheira sem chuveiro onde, pelo tamanho, quase cabia o Couraçado Potemkine.

O Peter fez uma pausa e acendeu outro cigarro:

- Terminada a inspecção, voltou ao quarto e, pondo a mala sobre a cama, abriu-a e começou a guardar as camisas, os fatos e outros artigos de vestuário nos guarda-roupas e nas gavetas de uma das cómodas. Da mala tirou o último livro do James Bond, que trouxera para ler antes de dormir e, ao pousá-lo na mesinha de cabeceira, lembrou-se de que estava em Moscovo e de que era estrangeiro. Descalçou-se e, pé ante pé, com os passos protegidos pela espessura do tapete que cobria todo o chão, percorreu todos os cantos, espreitando nichos e espaços onde pudesse haver microfones ou câmaras ocultas de televisão que o estivessem a filmar e a enviar as suas imagens para a KGB. Nada! Ou estavam muito bem escondidas ou não havia nada. Mas o Mark não acreditava que assim fosse…

O outro Moore, o Ronald, que já devia conhecer a história, interrompeu o homónimo:

- Sorry, old chap…Algum de vocês quer outro café?

Eu não quis, o Peter disse yes please e continuou, comigo cada vez mais interessado:

- E tanto não era que, ao dar nova olhada em volta, viu que o candelabro tinha, na parte de baixo, no sítio onde os vidrilhos e as lâmpadas vinham confluir, um botão, de metal prateado. Acenou a cabeça num silêncio sorridente e, encaminhando-se até uma mesa redonda que havia num dos cantos do quarto, levantou um pesado cadeirão e, sempre sem fazer ruído, trouxe-o aos poucos até ao centro do aposento, pousando-o mesmo por baixo do candelabro. Depois, subindo para o cadeirão, levantou os braços e, segurando o candelabro com a mão esquerda, para evitar que baloiçasse, começou, com a mão direita, a desatarrachar, lentamente, o botão prateado…

Aí o Peter calou-se e tomou o último gole do café já quase frio. Vi-o calado e não aguentei:

- Yes, Peter… And then?...

Sorriram, os dois Moore, à minha ansiedade. E o Peter, depois:

- Quando acabou de desatarrachar o botão, o candelabro caiu-lhe em cima e a ICI, para além de o pagar, teve de pedir ao embaixador da Grã-Bretanha em Moscovo que apresentasse desculpas ao Governo soviético…

(Texto de Álvaro Magalhães dos Santos alvasantos@netcabo.pt)
http://www.truca.pt/historias_materail/historias10.html